Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Narrativa Diária

Não escrever um romance na «horizontal», com a narrativa de peripécias que entretêm. Escrevê-lo na «vertical», com a vivência intensa do que se sente e perturba. Vergílio Ferreira

Narrativa Diária

Seg | 23.10.17

Juiz justifica violência doméstica com adultério da mulher

  

tribunal 1.jpg

 

Segundo uma notícia do JN  um acórdão da Relação do Porto condenou uma mulher que traiu o marido e que foi posteriormente vítima de violência doméstica, acabando sequestrada pelo amante.

 

O caso envolve uma mulher casada que se relacionou com um homem solteiro em 2014. Antes de terminar a relação extraconjugal, o amante reagiu de forma ameaçadora e revelou, inclusive, a traição ao marido.

 

Os dois, amante e marido,  acabaram por exercer violência física e psicológica sobre a mulher, tendo sido condenados pelo tribunal a penas suspensas com um acórdão com decisões no mínimo surpreendentes. Ambos viram as suas penas atenuadas, sendo condenados a penas suspensas.

 

A Relação justifica as penas suspensas com base no Código Penal de 1886: «ainda não há muito tempo que a lei penal punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a matasse», lê-se no acórdão. «Com estas referências pretende-se apenas acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher», justificam os desembargadores.

 

Inconformado, o Ministério Público recorreu para a Relação do Porto invocando, entre outros argumentos, uma valoração errada da prova e da medida da pena, sugerindo a aplicação de uma mais grave e efetiva pena de prisão.

 

No acórdão do tribunal superior, assinado pelos desembargadores Neto de Moura e Maria Luísa Abrantes (enquanto adjunta), os juízes explicam que a prova foi bem avaliada pelo tribunal de primeira instância, que entendeu que o marido, socialmente inserido, agiu num quadro depressivo. E vai mais longe. «O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal punia com uma pena pouco mais de simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse».

 

Ora, estas palavras de condenação moral são totalmente injustificadas e o que está escrito na Bíblia – ou noutro qualquer livro – é irrelevante já que vivemos num Estado laico. Ainda que o adultério possa ser um ato condenável moralmente, não cabe a um tribunal fazer julgamento de valor sobre o mesmo, muito menos atenuar a pena de violência doméstica por «compreensão». Pergunta que se impõe: seria a pena igual caso fosse um homem a cometer adultério?

 

Assim vai a nossa justiça. Se nos dissessem que esta decisão tinha sido aplicada no mundo árabe ou no século XVII na Europa não acharíamos estranho, mas ela foi decidida em pleno século XXI. Que triste país onde a justiça é feita desta forma!