Não escrever um romance na «horizontal», com a narrativa de peripécias que entretêm. Escrevê-lo na «vertical», com a vivência intensa do que se sente e perturba.
Vergílio Ferreira
Esta terça-feira, dia 2 de junho, na música e um pouco por todo o mundo, é dia de apagão. Algumas das mais conhecidas editoras e inúmeras figuras da indústria musical internacional anunciaram nas redes sociais um protesto em solidariedade com a comunidade afro-americana.
O Blackout Tuesday foi organizado por elementos indústria musical para demonstrar apoio aos protestos contra o racismo e a violência policial, desde a morte de George Floyd, agredido brutalmente e asfixiado até à morte por um polícia e está a ter uma forte adesão.
O Spotify, por exemplo, já anunciou que irá disponibilizar em algumas playlists uma faixa de silêncio com a duração de 8 minutos e 46 segundos, exatamente o mesmo tempo em que George Floyd, de 46 anos, foi mantido no chão com pressão no pescoço e costas durante a detenção em Minneapolis.
«Em poucos dias, Trump envolveu-se numa guerrilha com as redes sociais – ameaçando controlá-las ou até fechá-las – depois de a direcção do Twitter ter deliberado submeter a “fact-checking” algumas das suas mensagens, incluindo os “tweets” chamando “cães raivosos” aos manifestantes que protestavam contra o assassinato a sangue frio – e registado por telemóvel – de George Floyd, um militante negro, por um polícia. Note-se que, anteriormente, Trump se limitara a lamentar a morte do manifestante negro, sem adjectivar de forma idêntica o responsável pela sua morte. Além disso, nos seus últimos “tweets”, o chefe da Casa Branca multiplicara os ajustes de contas e as teorias de conspiração envolvendo personagens que se tinham tornado detestáveis aos seus olhos, incluindo um antigo representante republicano que Trump insiste em considerar culpado da morte de uma assistente há cerca de 20 anos, apesar de todas as evidências e conclusões da investigação e dos protestos do próprio viúvo da vítima.
Como se tudo isto não fosse suficiente como revelação do carácter e da saúde mental do Presidente norte-americano, Trump decidiu cortar os últimos laços da relação dos EUA com a China – e abandonando de passagem as ligações com Hong Kong, no preciso momento em que a região rebelde mais precisava delas –, agravando o clima de Guerra Fria que favorece os propósitos autocráticos do “imperador” Xi Jinping e os delírios do poder cultivados por ele próprio. Isto sem falar do corte de relações definitivas com a Organização Mundial da Saúde, independentemente das razões que possam assistir aos EUA na denúncia das dependências pró-chinesas da OMS.
Se o “America first” trumpista já pressupunha uma viragem do avesso do legado multilateralista americano, talvez nunca se tivesse imaginado que essa viragem fosse tão radical e ameaçadora para os equilíbrios mundiais edificados ao longo das últimas décadas.
A covid-19 não só pôs a nu como exacerbou a revelação da natureza inquietante do trumpismo, mas essa natureza ainda não suscitou a perplexidade e a rejeição previsíveis numa democracia aparentemente consolidada (mau grado todas as suas imperfeições) como é a americana. Ora, num mundo onde as autocracias tendem a expandir-se, a ruína da democracia americana é um dos maiores perigos que espreitam o mundo nestes tempos de covid-19 (cuja gestão pela administração Trump é, de resto, das mais caóticas e catastróficas que se poderiam imaginar).
Tendo tudo isto em conta, pouco mais resta do que a Europa para inspirar um sopro de verdadeira mudança num mundo progressivamente bloqueado. Daí o desafio sem precedentes que os europeus enfrentam hoje: ou assumem solidariamente os objectivos definidos por Macron, Merkel e Von der Leyen sobre a resposta às consequências da covid-19 ou voltam a ser derrotados – uma derrota irrecuperável e de repercussões trágicas – pelas tradicionais divisões e egoísmos suicidários. Infelizmente, há motivos para temer que essas divisões e egoísmos acabem por sepultar a esperança de que a Europa é, hoje, um farol quase único no mundo. A obrigatoriedade de um voto unânime de todos os países numa matéria tão sensível e decisiva é manifestamente anti-democrática, já que a democracia é o governo da maioria – simples ou qualificada – e não de uma artificial e até impossível totalidade.».