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Narrativa Diária

Não escrever um romance na «horizontal», com a narrativa de peripécias que entretêm. Escrevê-lo na «vertical», com a vivência intensa do que se sente e perturba. Vergílio Ferreira

Narrativa Diária

Sab | 05.04.14

Deve o voto ser obrigatório?

 

 

 

Freitas do Amaral defendeu o «voto obrigatório» como forma de eliminar a abstenção e até de motivar os jovens a participar na vida cívica e política portuguesa.

A obrigatoriedade legal do voto já existe nalguns países europeus e condiciona efetivamente a taxa de abstenção, contribuindo para a sua diminuição.

Mas deve-se-á adotar a participação massiva dos cidadãos como forma de aumentar a legitimidade democrática? E deve o cidadão ser legalmente obrigado a participar para legitimar o exercício do poder?

Esclareça-se, desde logo, que nem todo o abstencionismo é da responsabilidade dos cidadãos e não é resolúvel pela obrigatoriedade do voto. O chamado abstencionismo técnico, traduzido pelo diferencial entre o recenseamento eleitoral e o recenseamento da população, o que entre nós se diz que ultrapassa o milhão de eleitores, apesar da atualização dos cadernos eleitorais, é devido a deficiências administrativas e não cívicas.

A participação cívica começa no recenseamento. Assim, ao problema da obrigatoriedade do voto importa acrescentar o problema de saber se deve o recenseamento eleitoral ser obrigatório ou facultativo? Deve a inscrição nos cadernos eleitorais ser feita de forma automática e administrativa ou deve pertencer à iniciativa dos cidadãos? E, neste último caso, deve a negligência ou inépcia dos cidadãos ser punida ou sancionada penalmente? E de que modo?

A cidadania, antes de se traduzir em participação, identificou-se com a liberdade. A essa liberdade da participação sacrificou-se mesmo a igualdade perante o voto, com a adoção de formas de sufrágio censitário, anteriores à universalização e à democratização do sufrágio. O entendimento dominante da tradição eleitoral é que a participação pressupõe, histórica e deontologicamente, a liberdade. Não me parece, por isso,  que seja justo haver penalizações para quem não o faz. Cada um tem o direito a decidir se vota ou não. Deve ser dada ao cidadão liberdade de decisão sem pressão de qualquer tipo, a não ser com a nossa própria consciência, e não ir votar contrariado apenas por ser imposto pela lei, porque isso também poderá ter efeitos perversos, desvirtuando o sentido do voto e transformando-o num voto de protesto.

Surpreende-me, sinceramente, ver pessoas ditas «democratas» colocarem a hipótese do voto ser obrigatório ou justificar o voto com base no «dever». Tal obrigação não só se afigura anti-democrática como resvala para um certo totalitarismo, ao não reconhecer outras alternativas de acção ou participação política, nem o direito ao descontentamento, ou mesmo, porque não, o direito à ignorância ou ao alheamento, dois aspetos pertinentes de que as instâncias políticas deveriam estudar e retirar as devidas ilações, ao invés de censurar ou menosprezar quem as pratica. Acresce, que tornar um dever numa coisa que deve constituir um ato consciente e que exige ponderação, tal como obrigar alguém a cumprir uma ação que é considerada democrática, vai para lá da simples contradição.

Por isso mesmo, acho que nem o voto nem a abstenção devem ser princípios incontornáveis, não me parece curial sustentar o abstencionismo em qualquer circunstância, nem tão pouco o voto - e podemos discutir estas opções, em termos democráticos, dentro dos momentos em que é pertinente fazê-lo, considerando os prós e contras conjunturais e sem deixar de assumir a liberdade de cada um.

A democracia torna-se mais débil quando não somos capazes de sustentar as nossas ações e de perspetivá-las de acordo com as diferentes situações, legitimando-as através duma questão de «dever» e não através duma ponderação crítica.

É, em meu entender,  pelo aumento da participação livre, consciente e responsável que se deve reduzir o abstencionismo e aumentar a legitimidade. Será pelo reforço da cidadania ativa, da valorização da sociedade civil, do incremento do associativismo social, e não pelo aumento da intervenção do Estado, designadamente da sua intervenção penal, que se conseguirá resolver o problema da ausência de participação na vida pública e na vida política. Os partidos têm uma responsabilidade primordial nesta mobilização livre, consciente e responsável dos cidadãos, que não devem delegar no Estado. Devem ser capazes de se abrir à sociedade, expor claramente as suas ideias, em vez de se encostarem ao Estado para resolver problemas que, antes de ser políticos, são sociais.