Na mouche!
«Esta semana, um tweet abalou as redes sociais. João Quadros, “humorista e homem de esquerda” partilhou com o mundo aquilo que considerou ser “uma boa piada” e rezava assim:
“Eu a pensar que só havia uma cabeça rapada em casa do Passos”.
Uma piada, para merecer o nome, tem de fazer rir. Francamente não conheço ninguém que tenha sequer esboçado um sorriso perante isto.
Eu, como mulher de esquerda, senti-me profundamente envergonhada. Acabrunhada, é a expressão certa.
O humor tem limites? É uma discussão interessante. Mas podemos começar por chegar a um acordo: o humor tem de ter graça. O Quadros tem o direito de escrever uma coisa destas?
Pois claro que tem. Isso nem está em causa. Terá também em consequência (e tem) arcabouço para lidar com as críticas.
Aquilo que mais me surpreendeu na “piada” do Quadros foi, como já disse, a falta dela (e ele até me costuma fazer rir) e depois, a flagrante falta de inteligência em se apresentar assim numa bandeja, nu e frágil, perante todos os seus inimigos ideológicos que, por norma, até são os meus. Essa parte custa muito.
E assim, com um tweet, mergulhou de cabeça no lodo dos porcos que sempre combateu. Tudo por uma “boa piada” que, lá está, foi tudo menos boa.
As redes sociais incendiaram-se, os insultos subiram de tom, ameaçaram-lhe o filho, prometeram-lhe tareia e, por uma “boa piada”, colocou-se ao nível de diálogo dos verdadeiros racistas, xenófobos e misóginos que por aí andam.
Uma boa piada não se explica, a não ser que não seja boa. Sendo que esta é péssima. Quadros devia explicá-la. E devia, em simultâneo, pedir desculpa a Laura Ferreira. Engolia o orgulho e fazia aquilo que, pressinto, saiba intimamente que deve fazer.
E agora Laura.
Porque no meio de tudo isto está uma mulher que não foi tida nem achada.
No meio disto, está uma mulher que se chama Laura Ferreira porque (facto público) nunca quis adoptar o nome do marido.
Chama-se Laura Ferreira, é mulher e negra. Encontra–se, por isso, no grupo de pessoas mais discriminadas por todo o globo. Nascer mulher já determina viver em desigualdade. Nascer mulher e negra sentencia uma dupla discriminação.
O que sei eu sobre Laura?
Pouco. Sabemos todos e todas muito pouco porque sempre optou por não se expor. Sei que é fisioterapeuta, nasceu na Guiné e é mãe de duas raparigas.
Sei que é doente oncológica e por isso perdeu o cabelo. E não o sei porque a própria o tenha partilhado publicamente. Sei-o porque por vezes lhe tiram fotos à socapa, invadindo a sua intimidade, lá está, por ser “mulher de”.
Sei que tem um sorriso bonito porque das poucas vezes que aparece publicamente, está sempre a sorrir. E sei por intuição e empatia de vida que às vezes lhe deve ser muito difícil sorrir.
Laura Ferreira optou sempre por não cumprir um papel público e muito menos político. Não dá entrevistas, mal aparece (e sempre foi assim, não é de agora). Resguardou-se sempre. Recusou ser “mulher de”.
Quis ser apenas Laura. E é.
Tem por isso todo o direito a estar sossegada, a não ser incomodada.
E é também por isso miserável que possa servir de pretexto para ataques ao marido.
E é também por isso que este tweet do Quadros me revoltou, entristeceu e envergonhou. É que aqui não pode haver dois pesos e duas medidas: se fosse o Sinel de Cordes ( “humorista e homem de direita”) a fazer esta piada, a esmagadora maioria dos meus amigos far-lhe-ia a folha em três segundos, nessas mesmas redes sociais.
Laura foi utilizada como punchline de uma “boa piada” – que é péssima by the way – para ser reduzida a “mulher de”.
Não é a primeira, nem será a última. “Mulher de”, “Filha de”, “Irmã de”, “Namorada de” reflexos de um sexismo latente numa sociedade estruturalmente machista. À esquerda, à direita, não me interessa. Machista.
Laura quis ser só Laura. E é.
Eu cá envio-lhe um abraço cúmplice e fico a aguardar (sentada) o pedido de desculpas que lhe ficam a dever, e através dela, no fundo, a todas nós.
Rita Ferro Rodrigues»